Eu acho interessante como existem algumas dúvidas que por mais que o tempo passe, vira e mexe, elas acabam retornando. Seja porque, dado os meus aprendizados mais recentes, eu mesmo me questiono se o que acredito estar correto realmente está correto. Porque o contexto muda ou porque me vejo discutindo as mesmas dúvidas mas com pessoas diferentes, que eventualmente trazem novas perspectivas para a mesa. Uma dessas dúvidas é sobre a autonomia que Product Managers têm para tomar decisões.
Anos atrás (parece que foi ontem, mas foi em 2016!) eu escrevi um artigo onde procurei definir o que é e o que faz uma boa pessoa de Gestão de Produtos (recomendo fortemente a leitura antes de seguir adiante neste post), inevitavelmente uma das definições que eu apresentei é a famosa comparação do Ben Horowitz entre PMs e CEOs. Além de outras coisas, também falei da importância do papel de gerentes de produto na definição da visão e estratégia de um produto e no momento de priorizar o que será feito. Trazendo as informações dessa forma não é difícil chegar na conclusão de que sim, Product Managers deveriam ter autonomia para tomar decisões de produto. Mas será mesmo?
A primeira coisa que eu gostaria de trazer pra mesa para alimentar essa discussão é um conceito que tenho tentando aplicar pra muita coisa na minha vida do último ano pra cá. Parece algo simples mas faz bastante diferença na hora de entender uma disfunção organizacional, que é separar a disciplina de uma determinada posição, da posição em si. Por exemplo, se a sua empresa está tendo problemas na hora de lançar um produto isso é um problema da disciplina de Product Marketing, que pode ser responsabilidade de Product Marketing Managers ou de qualquer outra pessoa que execute esta disciplina.
Entender essa divisão de disciplina vs. posição é importante porque Product Management é uma disciplina muito recente na maioria das organizações. Muitas delas ainda não sabem ao certo como executar esta disciplina e tão pouco tem dentro de casa pessoas com experiência no assunto. O resultado disso é que a disciplina de Gestão de Produtos acaba sendo executada por uma série de pessoas e não necessariamente por uma pessoa de Gestão de Produtos em si. Por exemplo, eu posso ter a disciplina de PM sendo executada por Product Owners em parceria com Tech Leads e com a influência direta de um/uma CEO. Nesse cenário, de quem é a responsabilidade da tomada de decisão? Possivelmente ela é dividida entre todas essas pessoas… e inevitavelmente a opinião do/da CEO vai ter um peso diferente no caso de um impasse.
Minha provocação aqui é que ter a posição de Product Manager não garante que essa pessoa é a única responsável pela disciplina de Gestão de Produtos. Essa responsabilidade pode ser compartilhada entre várias posições diferentes, seja por uma escolha consciente ou inconsciente. Dessa forma, em caso de responsabilidade distribuída, é bem natural que o processo de tomada de decisão também seja distribuído, muitas vezes representado por um comitê.
Pelo contexto que eu trouxe no item anterior, no caso de não se ter claro quem é a pessoa que lidera a Disciplina de Gestão de Produtos e/ou da empresa ainda não ter confiança suficiente nessa pessoa, é bem comum existir algo como um Comitê de Produto, seja formal ou informalmente. Esse Comitê pode ter várias formas, mas normalmente é formado por representantes dos times de Engenharia, Gestão de Produtos, Design e dos times de Negócio (Vendas, Marketing, etc, muitas vezes incluindo o/a CEO).
Comitês, neste formato que descrevi, são muito valiosos, no sentido de trazer muitas perspectivas diferentes pra mesa. Um trabalho que, por sinal, é da disciplina de Gestão de Produtos. O problema desse tipo de estrutura, na minha opinião, reside no objetivo desse Comitê.
É importante a gente diferenciar Opinião de Decisão. Quando um Comitê é formado para dar opinião sobre determinado assunto, trazer visões diferentes pra discussão, questionar o direcionamento atual e etc, isso tende a ter muito valor. Mas quando o Comitê é formado para tomar decisões, isso normalmente gera inúmeros problemas.
Na minha visão, tudo e qualquer coisa dentro de uma organização deveria ter uma pessoa que é claramente dona dessa “coisa”, seja um projeto, uma área ou uma decisão. Quando essa dona não é claramente definida, pelo menos três coisas acontecem: 1) O processo de decisão se torna lento, dado que é preciso alinhar muita gente para uma decisão ser tomada; 2) Existe uma tendência de ninguém se sentir realmente responsável por essa decisão, o que dificulta a geração de aprendizado em caso de uma decisão ruim ser tomada e dificulta também a mudança dessa própria decisão caso necessário; 3) Se cria uma sensação de que consenso ou democracia (voto da maioria) é a melhor forma de tomada de decisão, e normalmente isso é uma forma bem pouco eficiente e eficaz de se fazer esse processo.
Nesse momento, depois de entender os dois tópicos anteriores, acredito que já tenha ficado claro a importância de se ter uma organização forte de Gestão de Produtos, principalmente de garantir que a liderança e gestão desse time, e dessa disciplina, seja feita por uma pessoa capacitada e com experiência no assunto. Para se aprofundar nesse tema eu recomendo o meu Curso de Product Leadership, onde compartilho muito dos meus aprendizados nesse tópico de liderança e gestão de times de produtos.
Por mais óbvio que seja, eu acho que é importante dizer que Gestão de Produtos é uma posição de bastante responsabilidade. Diferente de outras posições dentro de uma organização, a posição de PM, por mais júnior que seja, já é uma posição de liderança. Como PM você precisa ser capaz de definir uma visão para o seu produto (ou parte dele), uma estratégia para esse produto, escutar e trazer pra mesa várias perspectivas diferentes, inspirar as pessoas, incentivar a colaboração, ter habilidade para negociar decisões, resolver conflitos e por aí vai.
Quando você cria um time de Gestão de Produtos onde muitas pessoas, incluindo muitas vezes a própria liderança, não conseguem executar o papel de PM com excelência, inevitavelmente muitas disfunções na disciplina de Gestão de Produtos vão acontecer. Normalmente, disfunções associadas a ver a posição de PM como algo mais operacional, na linha de um PO ou Gerente de Projeto, por exemplo. Eventualmente algumas dessas disfunções vão se tornar parte da cultura da empresa, e vai ser difícil modificar isso no curto prazo. Como reflexo desse fato, possivelmente vai existir um desafio extra na hora de contratar e reter boas pessoas de Produto.
Apesar desse desafio, ou para evitar ele, é importante entender que ter um time forte de Gestão de Produtos é fundamental para que toda a máquina de produto funcione de uma forma ideal e com isso alcance os resultados que certamente são esperados pelo time executivo dessa empresa. Por um time forte de gestão de produtos eu me refiro a um time que mescle pessoas com experiência na disciplina de PM, experiência no mercado e talentos para serem desenvolvidos. Faço questão de reforçar isso porque é comum algumas pessoas interpretarem “time forte” como “time experiente”, e apesar de experiência ser importante, não é só disso que estou falando.
Um outro reflexo da maturidade de um time de produto é quando as pessoas entendem que quando estamos falando de liderança no contexto de Gestão de Produtos não estamos falando de uma liderança autoritária. PM não deveria dar “carteirada” na hora de liderar um time porque, por definição, PM não gerencia pessoas, gerencia o produto. O problema é que o produto é feito por pessoas, então como garantir que esse produto está indo na direção adequada? A melhor forma de fazer isso é influenciar as pessoas, dentro e fora do time, através do contexto.
A partir do momento que você, como PM, tem claro o objetivo no qual você está focando, entende os problemas e oportunidades que estão contidas nesse objetivo (árvore de oportunidade é uma ótima ferramenta para isso) e explora o seu cenário da perspectiva de negócio e do seu cliente, você é capaz de interpretar essas informações e comunicar a sua visão desse contexto para o seu time. Dependendo da forma como você comunica este contexto (o “filtro” da realidade que você faz de acordo com a sua perspectiva) você vai influenciar diretamente o seu time, por exemplo, dando mais relevância para um problema em detrimento do outro.
Sim, a linha entre influência e manipulação é tênue (haja vista toda a polêmica em cima da mídia e das redes sociais), mas é através desse filtro da realidade, da comunicação do contexto, que você consegue influenciar as pessoas e direcionar os esforços e atenção de todos para o lugar onde você acredita que o seu produto deveria caminhar. Esse é um dos motivos pelos quais se fala tanto da importância de técnicas de Storytelling para PMs, se quiser saber mais sobre esse assunto você pode escutar o Episódio 17 do Product Backstage que gravei com o Raphael Farinazzo.
Vale reforçar aqui que é justamente essa capacidade de “filtrar” a realidade, ou seja, como interpretar o contexto, compreender e quebrar problemas, encontrar oportunidades, definir o que é mais ou menos relevante e etc, que é um dos grandes valores que Product Managers podem trazer para um time de produto. É por esse motivo que quando eu estou selecionando alguém para trabalhar comigo eu não me importo muito com as técnicas que essa pessoa conhece, os lugares pelos quais ela já passou, anos de experiência e etc. Mas me importo bastante com a forma como essa pessoa pensa, como ela se comunica e que experiências (no sentido mais amplo) e olhar de mundo ela vai poder trazer de diferente para o time.
Uma vez que você tenha conseguido contextualizar o time sobre o objetivo que vocês precisam alcançar e tudo que cerca isso, é importante que você incentive todas as pessoas do time a colaborarem com o processo de produto de ponta a ponta, da concepção ao lançamento. Essa é hora em que eu gosto de usar a analogia que escutei pela primeira vez do Andrew Chen, de que você deveria ser menos um Product Manager e mais um Product Editor.
Editar ou curar um produto nesse contexto significa tirar a responsabilidade de você, como Product Manager, de sempre precisar ter as melhores ideias, ou que você é a pessoa que precisa identificar todos problemas, todos os riscos, todos os detalhes da solução que vocês estão criando. Para quem está liderando Produto é libertador poder dividir toda essa responsabilidade com todo o time. E para o time é normalmente muito mais motivante poder participar do processo de priorização, entendimento e concepção do que será feito. Se você quiser saber mais sobre isso vale ouvir o Episódio 14 do Product Backstage onde eu entrevistei o Rafael Dahis.
Na prática a ótica que eu gostaria que você tivesse sobre esse é assunto é que quando a gente fala de fazer produto a gente não deveria pensar em indivíduos e sim em um time. O time é a unidade básica de uma organização de produto e não as pessoas. Individualmente ninguém constrói nada em Produto, para qualquer coisa realmente importante que você queira construir você vai precisar de um time. É justamente esse conceito que permite que mesmo sem nenhuma pessoa tecnicamente espetacular em um time, você consiga alcançar grandes resultados, ou como o Marty Cagan definiu como subtítulo do último livro dele “Ordinary People, Extraordinary Products”.
Logo, a nossa responsabilidade como PM não é ser A pessoa que lidera produto, e sim ser a pessoa que lidera a disciplina de gestão de produtos e que influencia o time para que esse time tenha capacidade de gerir o produto de fato. Se tudo depender do/da PM para ser decidido você provavelmente está falhando na sua missão de empoderar o time. E possivelmente como reflexo disso você vai ter que trabalhar 16h por dia, sempre vai ter trabalho no final de semana, não vai conseguir tirar férias e vai passar por inúmeras discussões de quem é a pessoa responsável por tomar a decisão X ou Y, dado que fatalmente vamos estar falando de pessoas, não de times.
Antes de partir para a conclusão, um último assunto que eu acredito que vale a pena a gente conversar sobre é com relação ao formato e papel das lideranças dentro de cada estrutura de uma organização de produto (seja ela um Squad, uma Tribo ou a própria área). Eu considero esse assunto importante porque quando a gente fala de empoderamento, liderança por contexto, colaboração e etc uma coisa que pode prejudicar isso é polarizar a liderança de uma estrutura de produto em uma única pessoa.
Quando eu tenho um Squad Lead por exemplo, invariavelmente o time vai pender para a disciplina que essa pessoa domina, seja ela Gestão de Produtos, Design, Engenharia ou qualquer outra. Você queira ou não, a lente que essa pessoa vai aplicar para julgar e tomar decisões vai ser da disciplina de origem que essa pessoa tiver, seja isso feito de forma consciente ou inconsciente… é muito difícil fugir desse karma. Assumindo que essa afirmação é uma verdade, para preservar tudo isso que a gente falou até aqui sobre colaboração e unidade de time eu vejo como importante a liderança desse time ser um conjunto de pessoas que representem pelo menos as disciplinas básicas de Engenharia, Gestão de Produtos e Design.
Sobre esse tema eu gosto muito desse post do Alex Schleifer, VP de Design do Airbnb, onde ele faz uma analogia entre as três disciplinas básicas de um time de produto e um banco de três pernas. Se você tiver um banco de três pernas com uma perna menor do que as outras duas, ou até sem uma dessas pernas, esse banco certamente vai pender para um dos lados e, no limite, vai ser inútil. Trazendo para a nossa realidade, isso quer dizer que a gente deveria zelar muito para ter as três disciplinas de Gestão de Produtos, Design e Engenharia o mais equalizadas possíveis em termos de maturidade e poder de influência.
Toda essa mágica de colaboração dentro de um time de produto depende da capacidade de todas as pessoas, independente das suas disciplinas, poderem trazer pra mesa as suas perspectivas sobre determinado assunto e terem a tal da segurança psicológica para poderem fazer isso sem medo. Novamente, vou reforçar o conceito de que a unidade básica de um organização de produto não são as pessoas, são os times. E esses times, em todas as instâncias, precisam ser multidisciplinares e autônomos para tomarem as suas decisões.
Depois de ler tudo isso você deve estar pensando “Beleza Spengler, você falou um monte de coisas aqui mas ainda não respondeu a pergunta do título desse post, afinal PM é ou não responsável por tomar decisões de produto?”. Eu sei, me desculpe pelo suspense, mas eu prometo que esse post não é clickbait! =)
Eu quis falar tudo isso antes de responder a pergunta central porque eu acredito muito no poder e importância do contexto. Além disso, eu sempre me preocupo com esse tipo de definição porque nesse cenário a gente geralmente vira radical demais, vamos no extremo da definição. Mas indo para a resposta, sim, uma pessoa de Gestão de Produtos deveria ser a responsável, ou seja, ter autonomia para tomar uma decisão de Produto, independente do time concordar com essa decisão ou não. Novamente, buscar por consenso ou democracia na hora de tomar decisões normalmente não nos leva para o melhor caminho, muito menos é a coisa mais rápida a ser feita… e muitas vezes agilidade é um fator extremamente relevante, falei mais sobre isso nesse post.
Agora, por tudo isso que eu falei aqui, esse “super-trunfo” que uma pessoa de Gestão de Produto tem de poder bancar uma decisão, na minha visão, deveria ser usado muito raramente. Eu sinceramente lembro de pouquíssimas vezes ao longo da minha carreira onde eu tive que fazer isso. Mas no outro extremo, quando o/a PM sente que não tem autonomia para tomar decisões ou não tem a confiança necessária para isso, normalmente vão ser criadas inúmeras disfunções nesse time de produto e isso sem dúvida nenhuma vai gerar vários problemas e ineficiências. Então, em resumo, autonomia na tomada de decisão é uma coisa que todo PM deveria ter, mas poucos deveriam precisar usar.
A melhor forma de se tomar decisões de uma maneira saudável é, como falamos aqui, prezar por um time colaborativo, liderar pelo contexto e, sempre que possível, trazer dados (quantitativos ou qualitativos) e não meramente opiniões para a mesa. Bons PMs vão tomar uma porcentagem muito pequena das decisões, a grande maioria dessas decisões vão ser tomadas pelo próprio time, baseadas no contexto e na visão de mundo que essa pessoa de Gestão de Produtos apresentar.
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